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Após dois meses de nova rotulagem nutricional de alimentos, mudança ainda não é vista nas prateleiras
Prazo estendido para adaptação de produtos beneficia a indústria e prejudica o direito à informação clara e adequada de consumidores brasileiros
As novas regras de rotulagem nutricional de alimentos embalados completaram dois meses em vigor em 9 de dezembro. O modelo aprovado obriga as indústrias a incluírem a informação nutricional por 100 g ou 100 ml do produto e das quantidades de açúcares totais e adicionados na tabela de informação nutricional, além da inclusão de um rótulo frontal em formato de lupa para identificar produtos com altos teores de açúcar adicionado, gordura saturada e sódio.
Mas a mudança ainda não chegou, de fato, nas prateleiras dos mercados. A maioria dos produtos segue trazendo informações nutricionais referentes à antiga norma, devido aos prazos estabelecidos pela Resolução da Diretoria Colegiada nº 429/2020, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), para a adaptação da indústria de alimentos e bebidas.
A data de 9 de outubro de 2022 foi estabelecida apenas para produtos novos no mercado. Os alimentos em geral têm até 9 de outubro de 2023 para se adequarem, sendo que ‘os produtos fabricados até o final do prazo de adequação poderão ser comercializados até o fim do seu prazo de validade’ (RDC nº 429/2020, Anvisa).
Há ainda o prazo de 24 meses para os alimentos fabricados por agricultor familiar ou empreendedor familiar rural, empreendimento econômico solidário, microempreendedor individual, agroindústria de pequeno porte, agroindústria artesanal e alimentos produzidos de forma artesanal; e 36 meses para as bebidas não alcoólicas em embalagens retornáveis, observando o processo gradual de substituição dos rótulos, a contar de 9 de outubro de 2022.
A flexibilização dos prazos pode confundir os consumidores, uma vez que produtos com e sem lupa estarão concomitantemente nas gôndolas, mas produtos sem o rótulo frontal podem simplesmente não ter atingido os prazos para sua inclusão. Além disso, tal flexibilização impacta os direitos à saúde, à alimentação de qualidade e à informação clara e adequada, uma vez que ter acesso à rotulagem nutricional é urgente e uma questão de saúde pública. No começo deste mês a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) divulgou ‘Um estudo das políticas de rotulagem nutricional frontal nas Américas: evolução e resultados’, evidenciando que os sete países da região (Argentina, Chile, Equador, México, Peru, Uruguai e Venezuela) que implementaram sistemas de rotulagem nutricional frontal obtiveram resultados como diminuição do consumo e reformulação de produtos.
No Brasil, as novas regras de rotulagem representam um avanço, mas estão longe de atender a todas as necessidades dos consumidores. O modelo de perfil nutricional da OPAS estabelece critérios para identificar o alto conteúdo de sódio, açúcares livres, gorduras totais, saturadas e trans, além da presença de edulcorante (popularmente conhecido como adoçante) e define quais produtos de fato devem receber o rótulo frontal. Em relação ao desenho do rótulo, estudos brasileiros demonstraram que octógonos e triângulos comunicariam melhor a mensagem sobre o alto conteúdo de nutrientes e ingredientes prejudiciais à saúde para a população. No entanto, as chamadas Big Food e Big Soda – grandes indústrias transnacionais de alimentos e bebidas – não pouparam esforços para prolongar a discussão durante o processo regulatório no âmbito da Anvisa por seis anos (o debate teve início em 2014, quando foi identificada a necessidade de aprimoramento da rotulagem nutricional de alimentos embalados).
O resultado foi a aprovação, em 2020, de um modelo de rotulagem nutricional frontal sem evidência científica quanto a sua eficácia, porque estava de acordo com os interesses das grandes indústrias do setor, que realizaram uma série de ações de interferência e ameaças de perdas econômicas e de empregos. Essa decisão deixou de lado a ampla mobilização social em torno da rotulagem, que contou com mais de 82 mil contribuições em consulta pública realizada em 2019.
O modelo que começou a ser visto – ainda que timidamente – nas prateleiras em outubro apresenta um perfil de nutrientes frágil, que deixa sem o rótulo frontal muitos produtos ultraprocessados, a maioria dos quais com composição nutricional inadequada. O estudo da OPAS também ressaltou informações que tanto a ACT Promoção da Saúde, quanto o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) trabalham amplamente para divulgar: a má nutrição é uma das principais causas de doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) em todo o mundo, como pressão alta, doenças do coração, diabetes tipo 2 e alguns tipos de câncer. A disponibilidade e o consumo excessivo de alimentos ultraprocessados estão diretamente relacionados à epidemia das DCNTs.
Na Argentina, um dos países que implementou a rotulagem nutricional frontal de advertência de acordo com recomendação da OPAS, 90 organizações da sociedade civil denunciaram a Coca-Cola ao governo do país por descumprir a Lei de Promoção de Alimentos Saudáveis, estabelecida em outubro de 2021. No entanto, durante a Copa do Mundo 2022, a empresa vem realizando ações como: inclusão de desenhos de bolas de futebol nos rótulos de seus produtos, distribuição gratuita, estandes promocionais em pontos estratégicos onde é possível trocar embalagens retornáveis por entradas para ver o Mundial, e, como no Brasil, uma seção especial do refrigerante no álbum de figurinhas da Copa. A divulgação ocorre por meio de propagandas nas redes sociais e televisão.
A rotulagem de alimentos é um exemplo taxativo de como os interesses comerciais das Big Food e Big Soda estão sendo colocados acima dos direitos da população à alimentação adequada, à saúde e à informação. As consequências são o adoecimento e a morte: estudo divulgado em novembro pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e pela Universidade de São Paulo (USP) aponta que as mortes prematuras relacionadas ao consumo de ultraprocessados chegam a 57 mil por ano no Brasil, o equivalente a 10% dos óbitos de pessoas de 30 a 69 anos registrados em 2019.
Em momentos como o atual, de profunda crise socioeconômica, em que a fome assola 33 milhões de pessoas, o lobby pesado das grandes empresas sobre as políticas de alimentação, incluindo não só a rotulagem, mas a tributação de produtos não saudáveis, torna-se ainda mais pernicioso. Puxados por tributos aliviados, os preços dos ultraprocessados tornam-se cada vez mais baixos, enquanto os alimentos in natura tornam-se cada vez mais elitizados e menos acessíveis para a população vulnerabilizada.
É fundamental ampliar a discussão sobre as políticas públicas de alimentação e regulação do setor produtivo, de forma que a lógica invertida de priorizar os interesses de grandes empresas em detrimento do cumprimento dos direitos humanos relacionados à alimentação e à saúde seja finalmente abandonada. Não há democracia real sem que essa mudança seja efetivada.
Fonte: Carta Capital Online