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‘Assombroso não é ter câncer, mas sim não ter’: pesquisador explica por que vê nossa sobrevivência como ‘um milagre’
Carlos López-Otín pesquisa biologia de tumores há três décadas
As células que provocam o câncer assim o fazem porque se tornam “egoístas”, explica o professor espanhol de bioquímica e biologia molecular Carlos López-Otín, que chefia um laboratório de pesquisas dentro do Instituto Universitário de Oncologia do Principado de Astúrias, na Espanha.
O livro mais recente de López-Otín sobre o assunto se chama justamente Egoístas, Imortais e Viajantes – As chaves do câncer e de seus novos tratamentos: conhecer para curar (em tradução livre para o português).
No livro, ele descreve os processos tumorais e também a história do câncer, o turbulento caminho da ciência para desvendar sua origem e enfrentá-lo – a partir dos 30 anos de experiência do cientista na área.
De onde vem o câncer e por que não desapareceu com a evolução?
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“Saio à rua, começo a caminhar, olho para os lados e vejo que por coincidência duas pessoas caminham no mesmo ritmo que eu. Não as conheço, mas sei que ao menos um deles vai desenvolver um câncer ao longo da vida. Esses são os números da virulência”, diz ele em conversa à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
Leia os principais trechos da entrevista a seguir:
BBC – Por que o senhor diz que o câncer é uma tempestade perfeita?
Carlos López-Otín – Quando você entra (na tempestade), tudo é incerteza, mas as tormentas passam e hoje é mais fácil sobreviver ao câncer do que sucumbir a ele; há mais casos curados, mas ficam guardados os casos que não superam a tormenta.
Essa palavra é adequada porque o câncer, molecularmente, é uma tempestade de mutações, de danos no nosso material genético e seus arredores. Também é uma tempestade de medo, por causa do estigma (do câncer) se fala em sussurros. Às vezes me pergunto por quê, se tratando de uma doença tão frequente.
Já temos (incidência em) uma a cada três pessoas no mundo; delas, uma em cada dois, no mínimo, vai se curar completamente. E entre as que não se curam, muitas vão ter a doença cada vez mais controlada.
BBC – O câncer vai ser erradicado?
López-Otín – Eu acredito que não. O câncer forma parte da nossa essência biológica, é uma doença circunstancial à vida e à aquisição de complexidade celular. Enquanto tivermos componentes biológicos, células, tecidos e órgãos, haverá tumores.
Os vegetais também têm (câncer), os dinossauros tiveram, os homens das cavernas tiveram e os homens mais tecnológicos do mundo o terão, enquanto não forem substituídos por robôs.
BBC – Por que nossas células, que são generosas, altruístas e dão vida, escolhem o caminho da virulência? Como se tornam células egoístas?
López-Otín – Dependemos de as células se dividirem um determinado número de vezes, no máximo 60 ou 70, como mecanismo de segurança. Mas, de repente, uma célula sofre uma mutação. Uma só mudança nesses 3 bilhões de letras que compõem o genoma, neste longo verso interminável que é a vida, faz com que a célula adote uma estratégia egoísta: começa a se dividir e não responde a nenhum sinal de moderação.
Temos a esperança que isso se detenha aos 60 ou 70 ciclos, porque aí há um freio, mas ela comete mais erros, porque a sua divisão é urgente e a faz muito rapidamente.(…)
BBC – Qual o passo seguinte na sua transformação?
López-Otín – Ela (célula) necessita alcançar a imortalidade, que também está proibida. Somos mortais, e a cada segundo mais de 1 milhão de células se suicidam no nosso interior – morrem por apoptose, que é uma palavra grega (para morte celular programada).
(…) Com essas novas mutações nas células, algumas se tornam imortais e, uma vez que adquirem a imortalidade, ficam totalmente livres em sua capacidade de se dividir sem parar. Crescem tanto que esgotam os nutrientes do oxigênio.
BBC – É nesse momento que começam a viajar?
López-Otín – Elas precisam se alimentar, depois explorar outros territórios e aí é que começam com novas mutações. Esse afã viajante é uma exploração dentro do organismo. Elas usam a rodovia sanguínea e viajam até onde os nutrientes e o oxigênio não estejam comprometidos.
Por sorte, poucas – menos de 0,001% das que começam a viagem conseguem completá-la, mas, quando o fazem, começa sua aventura de colonização, como fazem as sociedades humanas quando buscam novos territórios. E, se são bem-sucedidas, criarão novas colônias, ocorrerão as metástases e aí nossa vida começa a ficar prejudicada.
Mas é uma viagem de condições incertas, não só pela dificuldade, mas porque está controlada pelo sistema imunológico.
BBC – Como esse sistema nos protege dessas células egoístas, imortais e viajantes?
López-Otín – O coronavírus retomou o interesse pelo entendimento do sistema imunológico como defesa contra micro-organismos, mas tem outra função decisiva: nos defender de nós mesmos, das células alteradas que estamos continuamente gerando, em um processo que chama imunovigilância tumoral.
Se você acorda com uma célula transformada, o sistema imunológico continuamente nos dá a oportunidade de reconhecê-la como estranha e eliminá-la; isso faz com que não tenhamos riscos extremos de ter tumores.
BBC – Quando o câncer se repete em uma família, o senhor recomenda investigar nossa herança genética para saber se somos propensos a gerar tumores?
López-Otín – Basicamente todos os tumores têm uma origem genética, porque surgem de danos nos nossos genes. Só alguns são infecciosos, como o vírus do papiloma ou algumas bactérias Helicobacter pylori que podem chegar a produzir câncer de estômago; são muito poucos os (tumores) que se devem a micro-organismos, que também acabam danificando ou confundindo nossos genes.
Todo câncer, portanto, é genético, mas só uma porcentagem mínima – menos de 10% – é hereditário, ou seja, os defeitos já trazemos de fábrica, de nossos progenitores, e isso nos torna suscetíveis a um tipo de tumor concreto.
Entre os mais comuns estão o câncer de mama e o câncer de cólon, mas há mais de 50 síndromes hereditárias de câncer.
É bastante fácil reconhecer e é importante ir a uma consulta de aconselhamento genético.
BBC – Seu livro relata o caso de Angelina Jolie e comenta as críticas que ela recebeu por sua decisão de realizar uma dupla mastectomia preventiva.
López-Otín – A mãe, a tia e a avó dela tinham morrido de câncer de mama ou de ovário; é um caso paradigmático.
No entanto, ela, com grande acesso à informação e a tantos recursos, esperou ter mais de 40 anos e ter filhos biológicos para testar se havia herdado a aparente mutação que existia na sua família, com uns 50% de possibilidade de tê-la herdado. E de fato a tinha, por isso ela tomou medidas profiláticas, agressivas para alguns, mas muito necessárias para pacientes.
(…) Os exames de câncer de mama hereditário são simples, você pode dar prosseguimento e tomar medidas mais radicais. As doenças de câncer hereditário, que são interpretadas como uma desgraça, são as que podem ser erradicadas em uma família concreta, porque você sabe qual é o defeito e pode agir com a legislação adequada (em cada país).
BBC – Haverá pessoas que se sintam negativamente afetadas por saber que têm um risco maior (de desenvolver tumores), que prefiram não saber?
López-Otín – No caso do câncer, (é melhor) saber, sempre saber, porque há muitas medidas que podem ser tomadas.
Angelina Jolie será a primeira na sua família a não morrer de câncer de mama ou ovário, apesar de ter a mutação para tal.
Outra questão são as doenças que ainda não nos dão uma oportunidade, como as neurodegenerativas.
Na Colômbia, há alguns núcleos com muitos casos de Alzheimer familiar e, na Venezuela, de doença de Huntington, para citar casos que vêm à mente. Neles, a possibilidade de intervenções são muito menores que no caso do câncer. Prefiro a informação, mas entendo que, se não há alternativas (de prevenção e cura), haja pessoas que não a queiram.
BBC – É relevante conhecer nosso genoma?
López-Otín – (…) Deciframos centenas de genomas completos de pacientes, especialmente com leucemia, mas também com tumores sólidos e toda a informação coletada tem sido extraordinária e gera mais alívio do que danos.
No entanto, no nosso genoma também temos escritas algumas predisposições – não mutações, mas sim predisposições -, que em determinados momentos podem favorecer o desenvolvimento de algum tipo de câncer, e também acho que seja muito importante saber.
BBC – Vai virar habitual analisar o próprio genoma, ou só algumas pessoas poderão fazer isso?
López-Otín – Não acho que esteja próximo que alguém diga ‘vou fazer um exame para evitar o câncer’, porque você não vai evitá-lo enquanto houver um componente de azar tão importante.
No nosso país (Espanha) deciframos centenas de genomas, encontramos mutações causadoras de tumores e, em alguns casos, pudemos desenvolver terapias específicas para os pacientes.
Isso não custou nem um euro, nada. Há sistemas muito simples que chamamos de painéis de genes que vão sendo implementados pouco a pouco em hospitais da rede pública – me refiro a sistemas baratos, simples, que garantem a justiça social.
BBC – Quando olhamos as possibilidades de modificação ou seleção genética, parece que poderia se abrir um novo sistema de desigualdades. É algo a se temer no futuro?
López-Otín – Teremos que ver qual será o alcance. A edição genética é outra das fronteiras que temos, ou seja, a modificação genética logo no início para evitar alguns males. É um passo a mais que gera muitíssimas dificuldades éticas.
Na China, foram violados, ao menos uma vez, todos os códigos a respeito disso, o que foi detido a tempo. Existe um grande consenso de que é preciso ter muito cuidado com intervenções.
Demoramos 3,5 bilhões de anos para sintonizar nosso genoma ao ambiente em que vivemos, e não é possível que em poucos anos, e por questões banais, estejamos dispostos a fazer modificações que não contribuem com nada essencial, mas que podem abrir brechas de discriminação.
Se fala também de neuroaumentação, o aumento das possibilidades neurológicas de uns e outros. A revista Time anunciou mais de dez anos atrás que em 2045 surgiriam os primeiros humanos imortais. Faltam só 23 anos, e nessa data haverá 100 milhões de seres humanos diagnosticados com Alzheimer.
Tudo o que tem a ver com o fato de que o cérebro segue sendo a última fronteira biológica de conhecimento.
Com isso, não entendo como o discurso vai sempre em direção a questões que nos fazem cair na arrogância, na prepotência. E na realidade estamos na ignorância, embora siga havendo iniciativas de investimentos multimilionários em busca da imortalidade.
BBC – O senhor compreende os que estão nessa corrida?
López-Otín – Quem quer ser imortal tem que lembrar que as verdadeiras imortais são as células egoístas que querem ser viajantes e criar tumores.
Estudamos a imortalidade para evitá-la. E, se não, que leiam o meu mestre imortal Jorge Luis Borges (escritor argentino), e em poucas páginas você se dá conta de que de nada vale ser imortal, porque em pouco tempo, em poucas centenas de anos, vai desejar voltar à fonte da mortalidade e ser como todo mundo, mortal.
BBC – O senhor teme o nada e o esquecimento, como chama a morte?
López-Otín – Não tenho medo do câncer nem de nenhuma outra doença; tomara que as que couberem a mim, como ser biológico, cheguem o mais tarde possível.
Tenho 63 anos, me parece uma façanha cósmica. Sessenta e três anos resistindo a milhares e milhares de mudanças diárias no meu genoma.
Me parece claro que o assombroso não é ter câncer, mas sim não tê-lo.
Quando você conhece os detalhes da delicadeza molecular, percebe que a sobrevivência é um milagre. Quando você observa as milhões de reações bioquímicas que fazem cada instante possível, o apreço pela vida é infinito.
O genoma está construído por 3 bilhões de peças em cada célula. E nesta noite, como em todas, o coloquei para replicar, porque cada célula que se divide faz uma cópia do material genético.
E despertei presumindo que não sofri nenhuma mutação significativa, me olhei no espelho e disse: “Nossa, hoje tampouco tenho câncer”. Mas o azar pode tudo e de vez em quando ocorre alguma mudança que nos faz entrar na dinâmica de células egoístas, imortais e viajantes.
Ter completado dois terços da vida sem a chamada dessas células me parece uma grande conquista.
Não tenho medo da morte porque a considero parte da vida e, portanto, que uma doença nos roube a vida e nos converta em nada e em esquecimento me parece ser o mais natural.
Fonte: BBC Brasil