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Brasileiros negros sofrem com escassez de doadores de medula óssea geneticamente compatíveis
Problema se deve à grande variabilidade do DNA de pessoas de origem africana e é também legado do escravismo
Brasileiros com características genéticas herdadas de ancestrais africanos tendem a ter mais dificuldade para achar doadores de medula óssea, revela um levantamento feito por pesquisadores da USP e do Inca (Instituto Nacional do Câncer). As chances de que essas pessoas encontrem amostras compatíveis para um transplante podem ser até 75% mais baixas do que a de doentes sem esse componente genético.
Não se trata de um problema exclusivo do Brasil. Em parte, ele se deve à grande variabilidade do DNA de pessoas de origem africana, superior à de grupos do resto do mundo. Também é um legado do escravismo, já que povos das mais diferentes regiões da África foram trazidos para cá, como se essa diversidade fosse colocada no liquidificador. E reflete ainda a relativa falta de acesso da população negra aos bancos públicos que ajudam a guiar os transplantes.
Os dados estão em artigo no periódico científico Frontiers in Immunology. No estudo, que contou também com a colaboração de outros pesquisadores de instituições brasileiras e americanas, a equipe analisou a variabilidade de cinco genes (diferentes regiões do DNA) que contêm a receita para a produção das proteínas do grupo HLA, elementos-chave do sistema de defesa do organismo.
Posicionadas na superfície das células, elas participam do processo de reconhecimento de elementos que podem ser estranhos ao organismo ou pertencem a ele (no primeiro caso, ajudam a desencadear um ataque ao invasor, levando à destruição de células infectadas por vírus, por exemplo).
O problema é que, quando alguém recebe um transplante da medula óssea de outra pessoa, por exemplo, esse mesmo sistema pode se voltar contra o doente, destruindo as células cujas variantes de HLA não batem com as do paciente, por exemplo. Daí a importância da compatibilidade entre os genes HLA do doador e os do receptor, o que evita esse risco.
Para complicar ainda mais a situação, é preciso considerar que a maioria das pessoas é heterozigota para esses genes, ou seja, carrega duas versões diferentes de cada um deles em seu DNA, explica uma das autoras do estudo, Kelly Nunes, do Laboratório de Genética Evolutiva da USP.
Ou seja, em vez de acertar a combinação de cinco genes para o transplante, é preciso ter o conjunto correto de dez variantes, dependendo da doença. Problemas de saúde como certas formas de leucemia e a anemia falciforme são tratadas por meio desse procedimento. “E há milhares de alelos [nome dado às versões de cada gene] em cada um dos cinco genes. Por isso é tão difícil encontrar dois indivíduos não aparentados com a mesma combinação”, conta ela.
Com o objetivo de aumentar essa probabilidade, o Brasil tem um banco de dados público, o Redome (Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea), ligado ao Inca. Ele conta com 5 milhões de participantes, sendo o terceiro maior do tipo no mundo. O que os pesquisadores fizeram foi comparar a diversidade de genes HLA presentes no Redome com os dados de DNA de mais de 8.000 brasileiros, cujo material genético foi obtido em outros trabalhos realizados nos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco, Bahia e Rio Grande do Sul.
Nesse processo comparativo, os cientistas levaram em conta três tipos diferentes de variável: a autodeclaração racial das pessoas (nas categorias “branco”, “pardo”, “preto” etc., usadas nos censos do governo federal), uma estimativa da proporção de diferentes ancestralidades no DNA (feita usando métodos comuns da genômica) e, por fim, a proporção de genes HLA tipicamente africanos em cada indivíduo. Os pesquisadores também levaram em conta a quantidade de alelos (variantes) de genes que batem (seis, oito ou dez, por exemplo).
Como o Brasil é um país muito miscigenado, no qual muitas vezes a aparência das pessoas não bate exatamente com sua herança genética, seria de esperar que nem sempre as categorias raciais dos censos se encaixariam perfeitamente com as informações sobre os genes HLA.
Mesmo assim, em todos os casos, a situação é desfavorável para quem tem mais ascendência africana. Quando a busca era feita com base na compatibilidade de seis alelos, por exemplo, 91,1% dos indivíduos considerados brancos tinham pelo menos um doador compatível no Redome, enquanto o número caía para 84,7% e 82,9% no caso de pardos e pretos, respectivamente. No entanto, diversas doenças exigem a compatibilidade em dez alelos para que o transplante funcione. Nesses casos, 16,9% dos brancos têm doadores compatíveis, contra apenas 7,3% dos pretos.
Para dez alelos, as pessoas com menos ascendência genética africana da amostra teriam doadores potenciais em 18,6% dos casos, enquanto as que têm mais contribuição de DNA africano conseguiriam isso em apenas 7,12% dos casos.
“Não encare os dados que reportamos como número de doadores”, diz Diogo Meyer, também pesquisador da USP e coautor do estudo. “Entre o que descrevemos e um transplante de fato ser planejado, há etapas adicionais, entre elas confirmar a compatibilidade e ver se o doador está disponível e em boa saúde. Nosso enfoque é comparativo, mostrando que logo na primeira etapa já há uma grande diferença correlacionada com ancestralidade.”
“Os dados da pesquisa representam um grande desafio para o Redome”, afirma Danielli de Oliveira, do Inca, que também assina o trabalho. “O cadastro dos doadores é um processo complexo, porque eles devem ser ‘fidelizados’ e se manter disponíveis por um longo período. Está evidente que, para contemplar toda a diversidade genética brasileira, o registro terá de buscar alternativas de acesso a essas populações, com a participação dos hemocentros locais.” Aumentar a presença de doadores do Nordeste, região com maior participação da ancestralidade africana no Brasil, seria um caminho possível, diz Meyer.
Fonte: Folha de S. Paulo | Equilibrioesaude – Reinaldo José Lopes