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Mulheres sofrem mais efeitos adversos após tratamento de câncer que homens

A pesquisa confirma que as mulheres sofreram mais toxicidade do que os homens com os tratamentos e também tiveram um risco maior de efeitos adversos hematológicos graves

A tabela de efeitos adversos – raros e frequentes – da cisplatina, um quimioterápico comum para tratar neoplasias avançadas, ultrapassa trinta; e a ficha técnica do pembrolizumab, imunoterapia aprovada para diversos tipos de tumores, inclui cerca de uma centena de possíveis danos colaterais. Nenhuma droga é inofensiva. Mas seus efeitos colaterais são desiguais e muitos fatores entram em jogo, como a situação anterior do paciente ou doenças subjacentes. E também o gênero.

Um estudo americano publicado no Journal Of Clinical Oncology revela que, após receber tratamento contra o câncer, as mulheres têm um risco 34% maior de desenvolver efeitos adversos sintomáticos graves do que os homens. A diferença é mais elevada quando o tratamento é a imunoterapia: diante dessa droga, elas têm um risco 49% maior de sequelas do que os homens.

Os pesquisadores revisaram os estudos de câncer de fase II e III conduzidos pelo centro SWOG (organização que realiza ensaios clínicos em câncer de adulto) entre 1980 e 2019. Excluindo os ensaios sobre tumores específicos por sexo (como mama ou próstata), no total, eles analisaram cerca de 23.300 pacientes (38% mulheres) que sofreram de aproximadamente 275 mil efeitos adversos. A toxicidade foi maior em mulheres, explica Joseph M. Unger, bioestatístico do Fred Hutchinson Cancer Research Center e primeiro autor do estudo:

– Encontramos aumentos especialmente grandes na toxicidade grave em mulheres em comparação com homens que receberam imunoterapias. Dada a crescente utilização destes novos e importantes tratamentos, deve ser prioritário compreender melhor a magnitude e as causas subjacentes a estas diferenças – explica o investigador.

A comunidade científica já sabia que havia diferenças entre homens e mulheres na abordagem terapêutica do câncer. Mas os estudos que a avaliaram, esclarece Unger, se limitaram ao impacto da quimioterapia e seus resultados clínicos (sobrevivência e progressão da doença).

– Este é o primeiro estudo a avaliar sistematicamente, em uma grande amostra, as diferenças na toxicidade do tratamento entre homens e mulheres para abordagens quimioterápicas tradicionais, bem como novas terapias, como as direcionadas e imunoterapias.

A pesquisa confirma que as mulheres sofreram mais toxicidade do que os homens com os tratamentos e também tiveram um risco maior de efeitos adversos hematológicos graves, especialmente em pacientes com câncer de cólon que receberam tratamento complementar à terapia principal. O estudo não especifica o motivo dessas diferenças, mas especialistas apontam várias hipóteses.

– Pode haver diferenças na medida em que mulheres e homens relatam eventos adversos, e pode haver diferenças em quão bem eles aderem aos medicamentos. Mulheres e homens também podem diferir em como processam fisicamente os medicamentos – observa Unger.

As mulheres, por exemplo, são menos capazes de eliminar o fluorouracil, um remédio contra o câncer que mata as células que crescem fora de controle.

O estudo acrescenta que o microbioma intestinal, que é aquele ecossistema de micro-organismos que povoam o intestino, também pode estar envolvido, ‘dado o seu papel na regulação das vias inflamatórias, metabólicas e imunes’, na forma como mulheres e homens metabolizam os medicamentos.

A pesquisa também não descarta que possa haver um viés ao relatar efeitos adversos, na percepção de doenças, ou em mulheres relatando mais do que homens. No entanto, Unger ressalta:

– É importante notar que também observamos toxicidade hematológica mais grave em mulheres, e as avaliações de tais toxicidades são inteiramente baseadas em medidas laboratoriais objetivas. Assim, a diferença na notificação explicaria parte desse padrão, mas apenas parte – acrescenta o especialista.

Para Rafael López, presidente da Fundação para Excelência e Qualidade em Oncologia, o estudo abriu os olhos para algo que eles já suspeitavam:

– Todos sentíamos que as mulheres tinham mais efeitos colaterais, mas a ciência oficial disse que não. Isso vai nos fazer mudar a forma como testamos os medicamentos, os regulamos e os administramos: os estudos devem ser desenhados levando em conta o gênero – aponta o médico, que também é chefe de Oncologia do Hospital Santiago de Compostela.

Ruth Vera, coordenadora da Comissão de Mulheres em Oncologia da Sociedade Espanhola de Oncologia Médica, concorda que a pesquisa de Unger mostra que ‘há uma influência do sexo na toxicidade dos tratamentos’ e isso deve ser levado em consideração ao prescrever os medicamentos e ao dosá-los .

Ambos os oncologistas, que não participaram do estudo, também endossam as hipóteses das causas. Vera destaca, por exemplo, que ‘a adesão aos tratamentos orais é maior nas mulheres do que nos homens’ e que o sistema imunológico em ambos os sexos também se comporta de forma diferente. López defende que ‘o sistema hormonal que diferencia homens e mulheres tem implicações para o sistema imunológico’ e será necessário ajustar os medicamentos por sexo:

– Agora as doses são ajustadas ao peso ou à superfície corporal, mas no futuro também por sexo ou de acordo com a situação hormonal: uma paciente em idade pré-menopausa ou pós-menopausa não será a mesma.

Ensaios clínicos irregulares

Narjust Duma, oncologista do Dana-Farber Cancer Institute e professor da Harvard School of Health, vai um passo além e alerta que existem desigualdades de gênero na oncologia e elas estão lá ‘desde o início’: diferenças nos efeitos adversos, por exemplo, têm sua origem em estudos pré-clínicos, destaca o pesquisador, que também não participou do estudo de Unger.

– Um dos grandes problemas na pesquisa do câncer é que usamos células masculinas e isso significa que quando você estuda uma droga no laboratório antes de testá-la em humanos, você usa modelos animais, como camundongos, e geralmente são camundongos machos. A maioria dos dados pré-clínicos vem de linhagens celulares em animais do sexo masculino e os dados que temos são de que a droga é potencialmente boa.

E essa desigualdade continua nos ensaios clínicos:

– Mais homens participam dos ensaios. Por exemplo, em ensaios de imunoterapia, apenas 30% das pessoas que participam são mulheres. Então, por que existem essas desigualdades (em efeitos adversos)? Porque não testamos esses medicamentos em mulheres até os ensaios clínicos e quando esses estudos chegam, apenas uma pequena porcentagem de mulheres é oferecida para participar deles – diz Duma.

Este pesquisador publicou um artigo na revista Oncology em 2019 em que também confirmou maior prevalência de efeitos adversos em mulheres com melanoma ou câncer de pulmão após receber um tipo de imunoterapia. O estudo revelou que elas podem ter maior risco de sequelas associadas ao sistema imunológico e maior probabilidade de desenvolver endocrinopatias e pneumonites.

Duma destaca ainda que ‘há desigualdades de gênero em todo o processo de cuidado do câncer’. Também nos diagnósticos e no início dos tratamentos.

– Nos tumores de bexiga, pulmão ou rim, as mulheres sofrem mais atrasos no diagnóstico e tratamento porque esses tumores são normalmente atribuídos a homens mais velhos. Então, quando vão ao médico, não entram no diagnóstico diferencial por causa disso.

O pesquisador garante que, nas mulheres, o foco social e midiático é tão centrado no câncer de mama que outros tipos de tumores são ‘esquecidos’. Por exemplo, mais mulheres morrem de câncer de pulmão. Em artigo na revista Nature, Duma denunciou que ‘a comunidade de pesquisa continua a ver o câncer de pulmão como uma doença de homens mais velhos, e as consequências desse estereótipo podem ser prejudiciais às mulheres, causando atrasos significativos no diagnóstico’.

Unger e sua equipe concluem que é preciso ter ‘mais consciência’ das diferenças entre homens e mulheres e entender melhor por que isso acontece para melhorar a abordagem terapêutica.

– Nossa esperança e expectativa é que os pacientes com câncer recebam cada vez mais tratamento individualizado e que o sexo do paciente possa ser um elemento importante ao considerar opções de tratamento individualizado.

 

Fonte: O Globo Online

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