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Panorama da HPN no Brasil: relato dos pacientes e perfil sociodemográfico

Introdução

A Hemoglobinúria Paroxística Noturna (HPN) é uma rara doença adquirida, caracterizada por anemia hemolítica crônica, que afeta as células formadoras de sangue. Essa condição está associada a infecções frequentes, devido à baixa contagem de neutrófilos e plaquetas. A HPN costuma ocorrer em conjunto com outras doenças hematológicas, especialmente aquelas relacionadas à falência medular, como anemia aplásica e síndromes mielodisplásicas1,2.

A causa da HPN é uma mutação no gene PIG-A das células-tronco hematopoiéticas, responsável por codificar o glicosilfosfatidilinositol (GPI), um componente de membrana essencial para a ligação das proteínas CD55 e CD59 à superfície celular. A ausência dessas proteínas que regulam o sistema complemento, torna os glóbulos vermelhos mais suscetíveis à destruição, levando à anemia hemolítica. Essa destruição das células vermelhas pode impactar a qualidade de vida e aumentar o risco de trombose e danos em órgãos, sendo a trombose nas veias hepáticas e abdominais a principal causa de morte em pacientes com HPN1,2,3,4,5.

Os sintomas da anemia incluem fadiga, palpitações e dificuldade para respirar, além de dores de cabeça, dor no peito e abdome, dificuldade para engolir e disfunção erétil. A urina com coloração avermelhada ou marrom, especialmente pela manhã, é um sinal clássico da doença, resultado da destruição das hemácias1,3,6,7.

A HPN é difícil de diagnosticar devido à sua raridade e variabilidade nos sintomas. Estima-se que nos Estados Unidos haja entre 1 a 5 casos por milhão de habitantes1,8, e no Brasil, a incidência é de 1,3 casos por milhão9. A doença afeta homens e mulheres, com a maioria dos diagnósticos entre 30 e 50 anos de idade2,3,9.

Os testes para diagnóstico incluem o teste de HAM, um exame de sensibilidade ao complemento em meio ácido, e a citometria de fluxo, que verifica a ausência de CD55 e CD59 nas hemácias. O tratamento pode envolver anticoagulantes, suplementação de ferro e ácido fólico, transfusões de sangue e o uso de medicamentos imunobiológicos como o eculizumabe, que inibe a destruição das hemácias. Já o transplante de medula óssea é uma opção curativa para apenas alguns casos3,8,9,10,11.

Ainda com o tratamento individualizado e adequado, a qualidade de vida das pessoas vivendo com o HPN fica prejudicada por todos os sintomas que a doença promove. Portanto, o objetivo do estudo foi realizar a análise descritiva sociodemográfica das pessoas com HPN no âmbito do SUS, quanto aos seus procedimentos ambulatoriais, internações e distribuição geográfica, bem como entender os desafios enfrentados diariamente pelas pessoas com HPN através de uma roda de conversa.

Metodologia

Foi realizado um estudo transversal descritivo quanti-qualitativo, por meio de dados abertos e também grupo focal.

Quanto aos dados aberto, foram selecionados dados secundários de acesso público do Datasus, disponibilizados pelo Ministério da Saúde (https://datasus.saude.gov.br/transferencia-de-arquivos), referentes aos Códigos Internacionais de Doenças (CIDs) D59.5 para Hemoglobinúria Paroxística Noturna (HPN) do período de 2018 a 2022, englobando autorizações de internações hospitalares (SIH) e dados de Produção Ambulatorial (PA) do Sistema de Informação Ambulatorial (SIA). Esses dados se referem ao Sistema Único de Saúde (SUS) e não incluem informações da rede complementar.

Os bancos de dados foram tratados e organizados no Microsoft Excel®, selecionando-se as seguintes variáveis: sexo, faixa etária, raça/cor, município de residência e de tratamento (para avaliar deslocamentos), tempo até o início do tratamento, local do procedimento/internação, custo do procedimento e internação, tipo de procedimento, ano de diagnóstico, ano de realização do procedimento, ano de internação e ano de óbito. Esses dados foram utilizados para gerar uma série histórica ao longo dos anos analisados.

Para estimar o número de indivíduos com HPN, foram cruzadas as variáveis “município de tratamento”, “município de residência”, “sexo” e “CID Principal” no banco de Produção Ambulatorial. No banco de Hospitalizações, a variável relacionada à Autorização de Internação Hospitalar foi utilizada para numerar as internações durante o período de estudo e o número de pacientes foi estimado com o cruzamento das variáveis “CEP” e “data de nascimento”.

Após a sistematização dessas variáveis, foi desenvolvido um painel interativo no Microsoft PowerBI. Esse painel oferece uma visualização clara e intuitiva dos dados mais relevantes, facilitando a análise e interpretação dos resultados obtidos no estudo.

Já o grupo focal envolveu a seleção de seis pacientes com HPN de diferentes estados do Brasil, que participaram de um grupo focal. Esse encontro foi realizado de forma virtual, utilizando a plataforma Microsoft Teams. Os pacientes foram convidados por meio de contato telefônico, com envio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Após a aceitação, a confirmação da data e horário foi enviada por e-mail. O grupo foi conduzido por um pesquisador da ABRALE, seguindo um roteiro estruturado elaborado no Microsoft Word. As perguntas foram direcionadas para explorar as percepções e experiências dos pacientes sobre o impacto da doença, o processo de acesso ao tratamento, o conhecimento sobre a condição e os desafios enfrentados em sua jornada. O encontro teve duração aproximada de uma hora e trinta minutos, proporcionando uma escuta qualificada. As respostas foram analisadas por meio de análise de discurso e tabuladas no programa Microsoft Excel.

Os critérios de inclusão dos participantes foram: 1) estarem cadastrados no sistema de contatos da ABRALE; 2) terem diagnóstico de HPN; 3) aceitarem participar mediante assinatura do TCLE; e 4) serem maiores de 18 anos. Pacientes foram excluídos caso: 1) tenham falecido; ou 2) tenham cadastro incompleto.

Após as coletas de dados, foi realizada uma análise de discurso respostas abertas dos participantes. As análises foram feitas com através do Microsoft Excel.

Resultados

Procedimentos

No período, foram realizados 14.659 procedimentos no âmbito ambulatorial em 464 pacientes estimados, totalizando em uma média de 32 procedimentos por paciente. Porém, esses valores se devem ao aumento de procedimentos por paciente em 2023, quando é possível perceber a mudança dos protocolos terapêuticos utilizados quando comparado aos anos anteriores, sendo no último ano usado o medicamento Eculizumabe, indisponível anteriormente. O custo total dos procedimentos ficou em cerca de 57 milhões de reais, e a média de custo totalizou em R$ 11.319,12. Porém, esses custos se devem à incorporação do Eculizumabe no protocolo de tratamento, pois o mesmo tem um custo máximo de R$ 25.251,09 ao governo, fazendo com que o custo de tratamento aumente consideravelmente se comparado a outros anos.

Já em se tratando de internações, foram contabilizadas 444 no período de 2018 a 2023, para 256 pacientes estimados, totalizando em uma média de duas internações por paciente. A média de dias internado ficou em uma semana. Entre os internados, 5% precisou do uso da UTI. Foram contabilizados 18 óbitos em internações para o período estudado, o que corresponde a 4% dos casos. Foram gastos mais de 670 mil reais em procedimentos em internações para o período, com uma média de R$ 1.516,25 por internação.

Análise sociodemográfica

São Paulo foi o estado com maior número de procedimentos ambulatoriais (25,7%) e internações (22,7%), seguido por Paraná (12,1% e 8,8%) e Rio Grande do Sul (8,6% e 9,9%). Além disso, cerca de metade dos pacientes precisou realizar seu tratamento em outro município que não o de sua residência.

Quanto ao perfil das pessoas com HPN, a maioria é autodeclarada branca (55,4%), seguida por parda (34,7%) e preta (5,5%). Mulheres se mostraram mais prevalentes para a doença (53%). A faixa etária com mais pessoas vivendo com a HPN foi a de 30 a 39 anos (24%), o que leva a considerar as dificuldades de ser uma pessoa com doença crônica e rara no seu auge da produtividade.

Experiência do Paciente

Segundo os resultados do grupo focal tivemos que os pacientes geralmente desconheciam a HPN antes do diagnóstico, sendo diagnosticados após apresentar complicações como AVC ou outros problemas médicos graves, como falência hepática. O diagnóstico pode ocorrer muitos anos após os primeiros sintomas, como foi o caso de um paciente diagnosticado em 2008, após ser inicialmente tratado para aplasia medular.

Paciente 2:  “Fiquei surpresa quando descobri que tinha e não procurei ajuda médica por HPN. Procurei porque eu tive um problema no fígado e tive um AVC. Tive que passar por um transplante de fígado e fiquei com essa sequela do AVC. […] Fiz o transplante, para depois descobrir a doença.”

Paciente 5 “Eu tive os primeiros sintomas, só que eu tive o diagnóstico de aplasia medular. A partir daí, fui tendo recaídas, eu tive AVC. Quando foi em 2005, eu fiz o tratamento com timoglobulina. […] foi então que o hematologista e pesquisador do hospital das clínicas disse, ‘vamos fazer um exame só para tirar minha dúvida’. No que ele fez aí, deu HPN em 2008.”

O tratamento afeta significativamente as atividades diárias e a vida profissional. Pacientes relataram perder parte significativa do dia para realizar o tratamento, principalmente quando têm que fazer o tratamento a cada duas semanas, o que impacta tanto o emprego quanto a qualidade de vida.

Paciente 4: “No caso, impactava muito. Eu estou desempregado no momento, mas isso impactava sim, porque eu fazia o período da tarde (tratamento) e acabava perdendo a tarde toda. E aí também tinha uma na época que quando fazia a retirada do medicamento, que era em um outro dia.”

A distância ao centro de tratamento varia entre os pacientes, com tempo de deslocamento que pode chegar a até 50 minutos de carro. O transporte é uma das dificuldades enfrentadas, com muitos pacientes relatando o uso de transporte público, que pode ser demorado e cansativo.

Paciente 1: “Em geral, vou de ônibus, mas algumas vezes eu também vou com a minha filha., é uns… uns 30-35 minutos, dependendo da do trânsito [….]”

Uma das principais dificuldades mencionadas é o tempo gasto no centro de tratamento, com longos períodos de espera para receber a infusão dos medicamentos. Além disso, a necessidade de sair de casa muito cedo para as sessões de tratamento foi um ponto destacado como um desafio constante.

Paciente 3: “O tempo de deslocamento, pacientes que a gente conhece que saem praticamente na noite anterior para fazer o tratamento e chegam na manhã seguinte, ficam o dia inteiro, aí às vezes retornam até no dia seguinte. O custo disso para um paciente que não tem muitas condições, que precisa fazer uma viagem de ônibus. Como é tratamento em hospital público, às vezes a gente fica esperando muito tempo lá, então imagina uma pessoa que trabalha, que precisa estar presente no trabalho e que o gestor não vai compreender tudo isso a cada 2 semanas. O tempo de infusão, o deslocamento e o tempo que a gente fica na unidade hospitalar, são os desafios.

Paciente 5: “Além do Tempo que tu passa, eu acho que hoje a gente é muito repetitivo. Os exames, documentação para fazer a retirada de medicamento e aí tem 1 ano que eu tenho que pagar para fazer. Tem uma doença que não tem cura, mas eu tenho a cada 6 meses tem que estar ali pagando e fazendo novos exames para provar que eu tenho isso para mim, acho que é mais difícil.

As respostas dos pacientes em relação ao impacto da HPN em suas vidas variaram de medo a esperança. Muitos expressaram a esperança de novos medicamentos que possam simplificar o tratamento, reduzindo a necessidade de infusões frequentes. Outros mencionaram gratidão por estar vivos e a expectativa de melhorias nos tratamentos disponíveis.

Paciente 5:  “Novas medicações surgirem para parar de infundir a cada 15 dias

Paciente 6: ”Acredito muito que virão novas medicações, que confiam muito, que estudam muitos projetos de terapia genética e tudo mais. A gente vai estar vivo até lá ou não, mas espero que tenha uma cura esperando a gente no futuro.

Conclusão

Esses resultados refletem o impacto profundo da HPN na vida dos pacientes, tanto do ponto de vista físico quanto emocional, além dos desafios relacionados ao tratamento.

Os principais achados deste estudo destacam importantes mudanças nos procedimentos e protocolos terapêuticos de pacientes com HPN. Foram realizados 14.659 procedimentos ambulatoriais em 464 pacientes estimados, com uma média de 32 procedimentos por paciente, em grande parte devido à introdução do medicamento Eculizumabe em 2023, que elevou significativamente os custos de tratamento, totalizando cerca de 57 milhões de reais. As internações somaram 444 casos, com uma média de duas internações por paciente e um tempo médio de internação de uma semana, sendo que 5% dos internados necessitaram de UTI e 4% evoluíram para óbito.

Em termos sociodemográficos, São Paulo liderou com o maior número de procedimentos e internações, e mais da metade dos pacientes precisou se deslocar para tratamento fora de seu município.

A experiência dos pacientes com HPN revelou um desconhecimento inicial da doença, sendo o diagnóstico muitas vezes tardio e relacionado a complicações graves. O tratamento afetou significativamente suas rotinas diárias e vida profissional, com desafios como longos tempos de espera e deslocamentos para os centros de tratamento. Os pacientes expressaram frustrações, mas também esperança em novas terapias que simplifiquem os tratamentos, como novas medicações e terapias genéticas que possam vir a oferecer cura no futuro.

Referências

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  2.  Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde. Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias e Inovação em Saúde. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas da hemoglobinúria Paroxística Noturna [recurso eletrônico] / Ministério da Saúde, Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde, Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias e Inovação em Saúde. – Brasília : Ministério da Saúde, 2020. 42 p.
  3. Manual Abrale. O que você precisa saber sobre a hemoglobinúria paroxística noturna (HPN). ABRALE – Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia. 2022, p 4-20. Disponível em: <https://www.abrale.org.br/wp-content/uploads/2022/11/Manual-HPN-Revisado-1.pdf>
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  9. Brasil. Minsitério da Saúde. Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias – CONITEC. Eculizumabe para tratamento de pacientes com Hemoglobinúria Paroxística Noturna (HPN). Relatório de Recomendação.[ Acesso em 15 de fevereiro de 2024] Disponível em:<https://www.gov.br/conitec/pt-br/midias/relatorios/2018/recomendacao/relatorio_eculizumabe_hemoglobinuriaparoxisticanoturna_cp63_2018.pdf>
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