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Bulas digitais poderão substituir formato impresso, mas proposta divide opiniões

Proposta inicial prevê adoção de bulas digitais através de QR Code em embalagens de medicamentos de uso hospitalar

Encerrou no último dia 19 de março a consulta pública da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sobre a adoção de bulas digitais. A proposta para adoção de QR Code na embalagem de medicamentos visa substituir gradualmente as bulas impressas e teve origem na lei 14.338 de 2022, que afirma que “a autoridade sanitária poderá definir quais medicamentos terão apenas um formato de bula”. O tema está previsto para voltar ao debate no 2º trimestre de 2024.

A ideia da Agência é iniciar uma transição partindo de medicamentos que são “acondicionados em embalagens múltiplas destinados exclusivamente ao uso em ambiente hospitalar, clínicas, ambulatórios e serviços de atenção domiciliar”. Após essa 1ª fase, outros medicamentos seriam estabelecidos após consulta pública e aprovação da Anvisa. Essa etapa seguinte só seria feita após Avaliação do Resultado Regulatório (ARR).

As informações estariam presentes em um Repositório de Informações Eletrônicas sobre Produtos (RIEP) e poderiam contar com imagens, áudios, vídeos e outros tipos de informações que auxiliem os pacientes e profissionais de saúde, além da bula tradicional. No entanto, a proposta da Anvisa divide opiniões.

Por um lado, é vista como uma proposta de realizar uma transformação digital , com a possibilidade de economia para as indústrias farmacêuticas. Por outro, existe uma preocupação de farmacêuticos e pacientes sobre a acessibilidade e a falta de informações necessárias para que a população faça uso dos medicamentos. O tema também possui forte pressão do mercado de gráficas, já que serão um dos principais afetados e temem pela redução da receita.

Dados do TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação nos Domicílios Brasileiros) Domicílios 2023 , pesquisa lançada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, apontam que 29 milhões de brasileiros não utilizam a internet do país. Apesar de ser minoria no país, também existe grande parcela da população que, apesar de utilizar a internet para acessar redes sociais, não possui letramento digital para utilizar outras ferramentas.

“Quando nós colocamos um recurso de ponta, como é o recurso digital, para uma coisa tão séria quanto a medicação, por óbvio que esse veículo digital precisa de fato ser de alcance dos pobres. Porque não tem meio cidadão, ou é ou não é cidadão. O rico e o pobre tem a cidadania absolutamente e rigorosamente igual. E por dever de equidade e justiça não podemos privilegiar um e não contemplar o outro. Temos que tentar trazer os dois lado a lado”, afirmou o diretor-presidente da Anvisa , Antônio Barra Torres, durante a aprovação da consulta pública.

Indústria vê potencial em sustentabilidade

A Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) é favorável a proposta da Anvisa de transição, e defende que há diversas vantagens em adotar as bulas digitais, como disponibilizar Informações que podem ser acessadas em vários idiomas, criar uma interface atraente, apresentável e fácil de consumir, com outros recursos potenciais de suporte e potencial de atender às necessidades dos pacientes.

“Países como Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Chile, Coréia do Sul, Espanha, Estônia, Japão, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Noruega, Portugal, Singapura, Taiwan entre outros, já possuem projetos em andamento para substituição da bula impressa pela digital e abarcam medicamentos de uso restrito a estabelecimentos de saúde”, afirma Renato Porto, presidente-executivo da Interfarma.

Apesar de não estimar a economia financeira decorrente da medida, Porto aponta que há potencial para estimular a sustentabilidade, reduzindo volume de papel, tinta e todas as atividades industriais associadas às impressões, contribuindo, segundo o presidente-executivo, para a diminuição da pegada de carbono da indústria farmacêutica .

Como se trata de projeto piloto, de acordo com a proposta de regulamento da Anvisa, as empresas que possuem em seu portfólio os produtos da Fase I, ou seja, aqueles dispensados diretamente aos profissionais de saúde, podem disponibilizar a bula digital e excluir a bula física. Para os demais produtos, as empresas já poderiam aderir voluntariamente ao projeto piloto da Anvisa, mas devem manter a bula impressa”, explica ele.

Durante a consulta pública, outro representante da indústria farmacêutica que se manifestou foi o Grupo FarmaBrasil , associação que reúne as principais empresas brasileiras do ramo. A entidade propôs uma alteração, sugerindo que deve haver garantias para que a bula física esteja sempre disponível quando solicitada pelo estabelecimento de saúde ou consumidor.

Entre as 1849 respostas à consulta pública, houve grande atuação de cidadãos contrários à proposta. Das 68 pessoas jurídicas que participaram da consulta pública, 38 delas apontaram impacto negativo ao segmento ao qual pertencem, 12 indicaram pontos positivos e negativos, e 18 empresas ou entidades apontaram uma percepção positiva.

Farmacêuticos temem falta de acesso

Para a vice-presidente do Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo (CRF-SP), Luciana Canetto, a proposta da Anvisa é importante, mas a entidade é favorável desde que não haja a exclusão da versão imprensa. O ideal seria manter as duas opções, garantindo o acesso a versão digital ou física.

“Entendemos que seria um risco enorme para essa parcela da população não ter onde consultar essas informações, sobre para que serve o medicamento, contraindicações, doses recomendadas, etc. A internet pode falhar no momento que o paciente esteja precisando tomar um medicamento e não ter onde olhar. Futuramente, quem sabe o Brasil esteja em outro patamar”, explica Canetto.

Mesmo com a proposta de iniciar apenas medicamentos destinados ao ambiente hospitalar, o CRF-SP defende que é preciso manter a versão impressa. Isso porque existe uma falta de definição do que é considerado ambiente hospitalar, o que poderia impactar as farmácias que estão dentro das unidades.

Geralmente esses medicamentos são comprados em embalagens hospitalares. Em uma farmácia pública você não compra individual, a maioria é em caixas hospitalares até para baratear o custo, e muitas vezes entrega só o blister para a pessoa. O paciente não recebe a caixinha, mas dentro da caixa hospitalar vem centenas de bulas”, explica a vice-presidente.

Caso a proposta avance para outros medicamentos que sejam comercializados diretamente à população, Canetto afirma que as farmácias deverão adotar medidas para imprimir a bula digital no estabelecimento, mesmo que não concordem com a transferência dessa obrigação. Contudo, o papel do farmacêutico segue sendo importante para orientar a população sobre o uso dos medicamentos.

Luciana também aponta que mesmo hoje, a bula não é de fácil leitura pela população geral, e estudar a possibilidade de criar uma bula para leigos pode ser importante.“ Mas em muitas situações de emergência o próprio profissional de saúde não tem um acesso rápido à internet. É possível ter uma bula menos complicada, mas defendemos que tem que ter uma parte para leigos e outra para o profissional de saúde. É interessante pensar em uma bula mais acessível, mas divida”, afirma.

Novos formatos

Do lado dos pacientes, a Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia (Abrale) tem um posicionamento semelhante ao do CRF-SP. Catherine Moura, médica sanitarista e CEO da entidade, afirma que é favorável à adoção de novos formatos de informação, mas que não substituem a versão impressa.

Quantos mais formatos tivermos de informação relevante ao paciente, melhor. No entanto, não consideramos essa inclusão do formato digital como uma medida de substituição do formato existente. Apoiamos o processo de modernização e evolução do formato, sendo muito interessante incluir outros conteúdos a partir do acesso digital, mas não entendemos o porquê da necessidade da substituição do formato impresso” afirma a CEO.

A preocupação está também sobre a vulnerabilidade da população em relação ao acesso. Ainda, existe uma atenção sobre o risco de prevalência e consumo dos medicamentos, principalmente em um país com alto índice de automedicação, o que Catherine afirma que pede cautela para realizar essa transição regulatória.

“Além de ser um direito ao acesso à informação, disponível em qualquer momento para ser revisada, coisa que se você não tem conectividade ela não vai acontecer. As bulas tem um propósito claro, que é atuar não só com informação ao consumidor, como também alertar sobre os riscos se tiver um uso indevido e as interações medicamentosas”, analisa ela.

Do ponto de vista dos pacientes oncológicos, em alguns casos, o hospital onde é realizado o tratamento fornece a caixa e a bula da terapia utilizada, mas via de regra os médicos e associações muitas vezes são quem levam as informações sobre o tratamento. Catherine explica que pela fragilidade do período, as pessoas buscam mais informações quando sentem os efeitos colaterais das terapias.

“Existem tantas nuances. Não é só o nível sociocultural, as discrepâncias regionais ou a vulnerabilidade social, mas também a vulnerabilidade do próprio processo de cuidado. A pessoa que está enfrentando uma jornada oncológica nem sempre tem um cuidador, uma rede de cuidado ou familiar. Elas podem não estar aptas fisicamente e psiquicamente naquele momento a acessar uma bula digital”, observa a CEO, que também endossa a proposta de uma bula simplificada para a população.

A Abrale defende que haja um período maior de transição entre os modelos para que a sociedade possa avaliar o cenário e educar os consumidores sobre o tema. Catherine afirma que entende que existe progressão de modelos, “mao mesmo tempo, a definição de quais poderão migrar para o formato digital e qual deverá continuar no impresso, ainda existe uma nuvem, não existe tanta definição. De fato, essa é uma preocupação para nós”.

 

Fonte: Futuro da Saúde

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